Por:
Rose A. Blanco*
Sarapalha
nos leva para um vilarejo às margens do Rio Pará, abandonado pela população que
fugiu de um surto de maleita ou “sezão” - a malária. Numa propriedade rural
restaram apenas três habitantes: primo Ribeiro, primo Argemiro e uma idosa que
todos os dias faz a comida. A desolação é total.
O
único remédio disponível para controlar a doença era o quinino (sais de
quinina) que, consumido em altas doses, provocava uma série de efeitos
colaterais. Como mostra um dos diálogos do conto:
“ - Olha o
mosquito-borrachudo nos meus ouvidos, primo!...”
“ - É a
zoeira do quinino... Você está tomando demais..."
A tal zoeira no ouvido ou zumbido, um dos
efeitos colaterais do excesso de quinino, é uma síndrome denominada “Chinchonismo”
– uma referência à árvore que produz a quinina.
As propriedades de cura dessa árvore foram descritas pelo jesuíta Padre Antonio de La Calaucha, em 1633, na crônica de Santo Agostinho: “Uma árvore cresce, que eles chamam de árvore da febre, na região de Loxa, cuja casca tem cor de canela. Quando transformada em pó, juntando-se uma quantidade equivalente ao peso de duas moedas de prata, e oferecida ao paciente como bebida, ela cura febre e... tem curado miraculosamente em Lima”.
Entre
1620 e 1630 os jesuítas catequizadores assimilaram boa parte do conhecimento dos
indígenas das florestas na América do Sul, inclusive da cordilheira dos Andes.
Ali eles conheceram o poder de cura das cascas da árvore Cinchona, que os nativos também chamavam de kina-kina. Foi assim que os
jesuítas começaram a utilizar a "casca do Peru" para prevenir e
tratar a malária – a febre que na época ainda nem tinha recebido esse nome.
Naquele tempo, essa doença ainda era misteriosa. Em 1638, Francisca Henrique de Rivera, a condessa de Chinchón, esposa do vice-rei do Peru, foi acometida de febres fortes e como nada resolvia, permitiram que ela recebesse dos indígenas uma poção que consistia em um pó obtido da árvore que eles chamavam de quina-quina. Com o tratamento - que durou dias - a febre da condessa desapareceu. Relatos indicam que o nome da árvore, Cinchona, foi dado em homenagem à condessa.
A
doença da febre que ainda não tinha nome era a malária.
E foi o padre Bartolomeu Tafur, em 1645, que acabou levando algumas cascas da potente árvore para Roma, onde seu uso se espalhou na igreja. O resultado foi que os jesuítas viram ali um comércio lucrativo e criaram um pó milagroso feito a partir das cascas das espécies do gênero Cinchona. O tal medicamento ficou conhecido com “pó dos jesuítas” e começou a ser comercializado por toda a Europa.
Por volta de 1654, a casca peruana (na forma de pó dos jesuítas) chegou à Inglaterra. E aí quem não gostou nada dessa história foram os ingleses protestantes. Foi quando aconteceu um fato interessante: em 1679, o então rei da Inglaterra, Carlos II, adoeceu com uma forte e perigosa febre. Todos passaram a indicar o remédio católico como salvação, mas o rei, protestante, se recusava terminantemente a usar o pó dos jesuítas.
Entrou
em cena desta vez, um médico e boticário de Londres chamado Robert Talbor que preparou
um medicamento “puramente protestante” e curou o rei. Com as graças do rei, ele
foi nomeado cavaleiro e médico real. Só alguns anos depois é que se descobriu
que o tal remédio era, simplesmente, uma formulação diferente do pó dos
jesuítas, ou seja, também eram cascas da Cinchona.
O boticário Talbor ficou famoso por curar muita gente importante e acabou ganhando muito dinheiro com isso, resolvendo o problema de pessoas que, por questões religiosas, se recusavam a consumir o pó dos jesuítas. O fato é que as cascas da quina ou Cinchona se transformaram em remédios milagrosos ao longo dos três séculos seguintes: o pó das cascas era usado para tratar desde malária até queda de cabelos!
Quando Talbor morreu, em 1681, sua fórmula foi
revelada: seis copos de folhas de rosa, duas onças de suco de limão e uma forte
infusão da casca em pó dos jesuítas dispensada no vinho. O vinho, no caso,
era necessário, pois os alcalóides da casca eram insolúveis em água, mas se dissolviam
em álcool. O resto dos ingredientes provavelmente não serviam para nada, a
não ser para disfarçar o sabor amargo do pó das cascas da árvore.
O
remédio era bom, vinha da casca de uma árvore lá das Américas, mas não se sabia
mais detalhes. Até que em 1735, o botânico francês Joseph de Jussieu descobriu
que aquela casca amarga vinha de várias espécies de grandes árvores de folhas
largas. E foi em 1742, que o botânico Lineu deu o nome Cinchona ao gênero das
árvores que produziam o princípio ativo poderoso: o alcalóide quinina.
O pó preparado com partes das espécies Cinchona era o único remédio comercializado para o tratamento daquela febre até 1820, quando ocorreu o isolamento da quinina - um dos alcalóides da Cinchona - permitindo que o combate à malária se tornasse mais eficaz. As propriedades que as cascas da árvore tinham de combater a malária incentivaram os pesquisadores a descobrirem e isolarem o seu princípio ativo.
O pó preparado com partes das espécies Cinchona era o único remédio comercializado para o tratamento daquela febre até 1820, quando ocorreu o isolamento da quinina - um dos alcalóides da Cinchona - permitindo que o combate à malária se tornasse mais eficaz. As propriedades que as cascas da árvore tinham de combater a malária incentivaram os pesquisadores a descobrirem e isolarem o seu princípio ativo.
E foi assim que em 1820, o químico Pierre Joseph Pelletier e o farmacêutico Joseph Caventou - ambos franceses - isolaram a quinina em sua forma pura. Além da quinina, eles também isolaram outros alcalóides das cascas da árvore.
No idioma quíchua, a palavra "quina" significa "casca". Os indígenas que usavam a Cinchona como medicamento costumavam chamar a casca da árvore de “quina-quina ou kina-kina” (casca da casca). Foi na forma de sulfato (quinino) que a quinina acabou sendo utilizada com bons resultados para o tratamento das chamadas “febres perniciosas”: a malária.
Durante
muito tempo acreditou-se que a malária era causada pelo ar contaminado gerado por
pântanos e esgotos. A própria origem da palavra carrega essa explicação: “mala
ária” – expressão que em italiano quer dizer “mau ar”. Foi somente em 1880, que
o médico francês Charles Louis Alphonse Laveran observou que a malária era
transmitida por protozoários do gênero Plasmodium
falciparum, por meio da picada das fêmeas de mosquitos do gênero Anopheles.
Estas
espécies foram inicialmente encontradas na Cordilheira dos Andes. Nativas do
Norte da Bolívia e Peru, viviam entre mil e três mil metros acima do nível do
mar. Sempre tiveram grande importância no Peru, tanto que uma ilustração da
árvore Cinchona está presente no brasão de armas desse país.
Por volta de 1834, o médico François Maillot demonstrou a eficácia da quinina no tratamento da malária e o avanço desses estudos incentivou o cultivo da Cinchona officinalis. A Espanha começava a perder o controle sobre a sua comercialização.
Após a descoberta de Pelletier e Caventou, foram criados inúmeros métodos para extrair o alcalóide da planta e comercializá-lo como medicamento. Em pouco tempo, a extração e exportação para a Europa se tornou uma atividade muito lucrativa. A coisa toda foi ficando fora de controle. A coleta das cascas, que inicialmente era realizada sem matar a árvore, intensificou-se de tal forma que cerca de 25 mil Cinchonas eram cortadas por ano. Os governos do Equador, Bolívia, Peru e Colômbia, com medo de perderem sua fonte de lucro, passaram a proibir a exportação de Cinchonas vivas ou de sementes da planta, como forma de manter o controle sobre este mercado.
É
claro que a medida não deu resultado e disparou o contrabando. Segundo o livro
"Os Botões de Napoleão: As 17 moléculas que mudaram a história" (Penny Le Couteur e Jay Burreson),
o holandês Justus Hasskarl, diretor de um jardim botânico na Ilha de Java, no
ano de 1853 saiu da América do Sul contrabandeando um saco de sementes de Cinchona calisaya. Elas foram cultivadas
com sucesso em Java mas, lamentavelmente para os holandeses, essa espécie de Cinchona
tinha um conteúdo que quinina relativamente baixo.
Os ingleses tiveram uma experiência parecida com sementes contrabandeadas da Cinchona pubescens que eles plantaram na Índia e no Ceilão. As árvores cresceram, mas a casca continha menos que os 3% de quinina necessários para uma produção minimamente lucrativa.
Os ingleses tiveram uma experiência parecida com sementes contrabandeadas da Cinchona pubescens que eles plantaram na Índia e no Ceilão. As árvores cresceram, mas a casca continha menos que os 3% de quinina necessários para uma produção minimamente lucrativa.
Até que os holandeses conseguiram comprar, por apenas 20 dólares, uma libra de sementes da Cinchona ledgeriana, a espécie que produz maior porcentagem de quinina. A ilha de Java passou então a responder por mais de 95% da quinina comercializada no mundo. Em 1918, eles estabeleceram plantações extensivas desta espécie e dominaram o mercado mundial, obtendo enormes lucros. Por outro lado, Peru e Bolívia, locais de onde a Cinchona saiu, ficaram de mãos abanando.
A quinina teve um papel importante para muitos países durante as guerras. Havia o interesse em romper o monopólio do comércio e isso tornava o cultivo da Cinchona o sonho dourado das grandes potências: fortuna e glória!
Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial aconteceu um fato que merece destaque: ao invadir a Bélgica e a Holanda, a Alemanha confiscou todo o estoque europeu de quinina que estava armazenado no Kina Bureau, em Amsterdã. E lá se foi toda a reserva de quinina da Europa parar nas mãos dos alemães!
Cinchona officinalis |
Mais tarde, em 1942, quando os japoneses invadiram a Indonésia, os Estados Unidos e seus aliados ficaram praticamente sem fornecimento de quinina.
Restava
ainda uma pequena plantação de Cinchonas nas Filipinas, porém também esta foi confiscada pelos japoneses, algumas
semanas depois da invasão da ilha de Java. Mas um fato foi determinante nessa
história: antes que os japoneses tomassem as Filipinas, um último avião aliado conseguiu
sair do local transportando uma carga preciosa: 4 milhões de sementes de
Cinchona que foram levadas para Maryland,
nos Estados Unidos.
Estas sementes deram início a um cultivo na Costa Rica. Mas era só o começo. Não havia tempo para esperar que aquelas plantas amadurecessem a tempo de atender às necessidades de quinina na guerra. Mais de 600.000 soldados das tropas americanas na África e Pacífico Sul haviam contraído malária. A mortalidade naquele momento era de 10%.
A
falta de cascas de Cinchona exigia uma ação imediata. Uma equipe de botânicos
americanos, liderada por Francis Raymond Fosberg, recebeu a missão de viajar
para a Colômbia, Equador, Peru e Bolívia a fim de coletar novas espécies de
Cinchona e assegurar um carregamento de cascas para os EUA.
As espécies encontradas não tinham o mesmo elevado teor de quinina que a Cinchona ledgeriana. Ainda assim, entre 1943 e 1944, Raymond Fosberg e sua equipe conseguiram toneladas de cascas de Cinchona para os países aliados.
Por
outro lado, as forças aliadas se empenhavam em estudos químicos para descobrir um
substituto da quinina, mas esbarravam em alguns obstáculos: os fármacos sintéticos
não tinham a mesma eficácia desse alcalóide no combate à malária e ainda
produziam diversos efeitos colaterais como náuseas, diarréia e pele amarelada.
O alcalóide quinina foi por muito tempo o único remédio para tratar os doentes com malária. Entretanto, era preciso acabar com toda aquela dependência das cascas da Cinchona. Os estudos na busca por um fármaco sintético substituto foram intensificados e então a Cloroquina (CQ), versão sintética da quinina, foi desenvolvida em 1934 pelo alemão Hans Andersag. Hoje a Cloroquina faz parte da Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial de Saúde (OMS). O derivado da Cloroquina, a Hidroxicloroquina (HCQ), que é 40% menos tóxica, foi sintetizada pela primeira vez em 1946.
Apesar
do surgimento dos medicamentos sintéticos, até hoje o quinino é um remédio
muito usado em várias partes do mundo.
E
antes de finalizar a incrível saga desta planta que esteve envolvida em
disputas religiosas, políticas e até participou de guerras, vamos lembrar que a
Cinchona pode ter sido responsável pela criação de um dos drinks mais famosos
do mundo!
Ao que parece tudo começou por volta de 1825, quando soldados britânicos na Índia começaram a usar o quinino para se prevenirem contra a malária. Aquela mistura de quinino e água tinha um sabor insuportavelmente amargo e uma forma de contornar esse problema foi acrescentar açúcar, limão e gim. Nascia a combinação precursora do clássico drink. Garrafas de água de quinino com açúcar começaram a ser vendidas para serem consumidas com ou sem gim. A água tônica carbonatada foi introduzida no final do século XIX, quando se chegou à versão final do famoso Gin&Tônica.
* Rose A. Blanco é jornalista, escritora, paisagista e criadora do site www.jardimdeflores.com.br
Fontes
de Pesquisa:
* Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829) e a Virtude Febrífuga de um Grande Número de Quinas , por António M. Amorim Costa, Departamento de Química,
Universidade de Coimbra, Portugal
* Almeida, M.R.; Martinez, S. T.; Pinto, A. C., Revista Virtual de Química, 2017, 9 (3), Química de Produtos Naturais: Plantas que Testemunham Histórias
* Museu da Vida - Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
* Kropf, Simone e Massarani, Luisa - Carlos Chagas, A ciência para combater doenças tropicais; Rio de Janeiro: Museu da Vida / Casa de Oswaldo Cruz / FIOCRUZ, 2009
* Oliveira, Alfredo Ricardo Marques de; Szczerbowski , Daiane; - Quinina: 470 anos de história, controvérsias e desenvolvimento - Departamento de Química, Universidade Federal do Paraná, Curitiba - PR, Brasil
* Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI)
* Almeida, M.R.; Martinez, S. T.; Pinto, A. C., Revista Virtual de Química, 2017, 9 (3), Química de Produtos Naturais: Plantas que Testemunham Histórias
* Museu da Vida - Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
* Kropf, Simone e Massarani, Luisa - Carlos Chagas, A ciência para combater doenças tropicais; Rio de Janeiro: Museu da Vida / Casa de Oswaldo Cruz / FIOCRUZ, 2009
* Oliveira, Alfredo Ricardo Marques de; Szczerbowski , Daiane; - Quinina: 470 anos de história, controvérsias e desenvolvimento - Departamento de Química, Universidade Federal do Paraná, Curitiba - PR, Brasil
* Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI)
* Os Botões de Napoleão - As 17 moléculas que mudaram a história - Penny Le Couteur e Jay Burreson
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